Ao afirmar que o prazer feminino é revolucionário estaria eu desconsiderando as vidas trans?
Sonho Causado pelo Voo de uma Abelha ao Redor de uma Romã um Segundo Antes de Acordar de Salvador Dali
Por vezes, recebo reclamações quando, ao fazer propagandas do perfeito, sem defeitos, menciono sua maravilhosidade para “pessoas que têm clitóris”. Me questionam: “já não existe um nome para isso?” “Mulher?” Delicadamente, respondo: não, homens trans e pessoas intersexo podem ter. Então, me acusam de apagar as mulheres com esse discurso inclusivo, até pouco frequente por aqui. Mais uma vez respondo: não concordo, não faço isso, meu trabalho é centralizado nas mulheres, cito sempre as mulheres e, eventualmente, não vejo problema em referenciar “pessoas que têm clitóris”.
Recentemente, ao contrário, tenho recebido mensagens de homens trans que se sentem ofendidos com meu marketing. Um diz: estava bastante interessado em comprar seu sugador, porém não comprarei por você associar o clitóris ao feminino e um monte de coisa mais. Outro comentário afirmou: “minha existência é sempre apagada nas postagens da sua página.” Isso, especialmente, quando digo que o prazer feminino é revolucionário.
Obviamente, não engoli. Nem vou absorver argumentos do tipo. Tenho uma dimensão muito profunda dos problemas sociais. Do que é nascer mulher, o que é se tornar mulher ou, por necessidade, transacionar do gênero designado no nascimento. Antes de expor mais meus argumentos, não quero dizer que não possa adequar meu trabalho, melhorá-lo, evoluir. Como sou um ser social como todos os outros, estou passível a erros, a preconceitos no sentido estrito da palavra.
Porém, preciso que entendam: não sou uma marca de sex toys (pelo menos não no momento), sou uma escritora, uma estudiosa do social e dos papéis de gênero milenarmente binários e ainda ligados a nossa condição de nascimento. Quando vendo o perfeito, sem defeitos, não quero apagar a existência de seu ninguém. Quero, dentro do meu trabalho, propor o seu uso como o resgate do prazer feminino oprimido há séculos, demonizado. Quero defender a autonomia sexual das mulheres também como uma forma de nos protegermos de relações abusivas. Inclusive, porque eu também já estive nesse lugar.
Estava a pouco lendo o terceiro livro da tetralogia napolitana de Elena Ferrante. Estou fascinada em como as personagens principais, Elena e Lila, mesmo apresentando condições distintas (uma aparentemente é mais disposta ao prazer que a outra), descrevem o horror de suas experiências sexuais com homens. Se já recebo relatos terríveis de mulheres da minha idade, imagina como nossas mães, nossas avós, bisavós puderam vivenciar sua sexualidade? Toda nossa ancestralidade? De como mulheres sempre se colocaram como objetos de coito para o prazer alheio. A literatura e todas as formas narrativas, como venho afirmando, são interessantes mapas para interpretarmos a realidade.
E, antes que venham afirmar, não vejo essas indagações que trago como mimimi de quem quer “militar na internet”. Para mim, se trata de uma triste incompreensão material da realidade. Um desses comentários me acusa de binária, quando se intitula de boy. Percebem o escorrego no mesmo binarismo? O quanto esse óculos ainda está presente mesmo quando se tenta retirá-lo? Da minha parte, sigo achando: cada um pode ser, se intitular e se expressar como bem entender. Inclusive eu. Por isso, ninguém vai dizer como devo fazer meu trabalho. Tenho minha visão de mundo recortada a partir da minha existência. E isso também precisa ser respeitado.
Como me referi noutro texto, dentro dessa pauta, percebo um movimento misógino, possivelmente ainda inconsciente, cancelador de mulheres. Do nada, querem descartar toda e qualquer opressão conectada à nossa condição de nascimento. A mesma que, ao longo dos séculos, tem nos definido socialmente como mulheres, como homens, como seres superiores ou inferiores, como seres designados a servir - a clássica tríade do trabalho doméstico, sexual e reprodutor. Quando socialmente criamos grupos dissonantes do que é definido como papel de gênero (trabalho que também faço mesmo não sendo da comunidade LGBTQIA+), acredito, avançamos, destituímos uma caralhada de forças opressoras.
Mas veja bem, meu bem, quando você não entende a realidade muito palpável das mulheres, muito nítida - afinal, você sofreu todas as conhecidas questões por nascer fêmea e vivencia infinitos outros problemas após a transição - de qual lado você se coloca? Se o papo não é apagar a sua existência, por que você está querendo desconsiderar a minha? As das mulheres? Qual sentimento há por detrás disso? Qual reprodução, muito provavelmente inconsciente, de papel de gênero você está exprimindo?
Trago essa discussão com raiva porque a entendo, apesar de complexa, como urgente e necessária. Parafraseando Djamila Ribeiro, mulheres não são pessoas que têm clitóris. Mulheres são mulheres com realidades históricas bem demarcadas. Pessoas trans também são seres muito subalternizados nesse contexto patriarcal. Não há lados privilegiados aqui. O que há entre nós são camadas muito profundas dos mais diversos tipos de opressão. E, mais uma vez, estamos sendo estúpidos, estúpidas, em não vislumbrar o problema central. Para pensar sobre ele, te dou mais uma palavra: camisa de força.