Como você dança com a solidão?

Compartimento C, Coche 293 de Edward Hopper

Recentemente, li o tão comentado livro de Ana Suy: A gente mira no amor e acerta na solidão. Os tempos da vida são tão perfeitos que chegam a ser engraçados. Resolvi ler a obra porque, mergulhada na tetralogia napolitana de Elena Ferrante, comecei a ficar com um ódio mortal do personagem Nino a ponto de ter dificuldade de continuar. Magicamente, a vontade de lê-lo coincidiu com um momento onde estava ansiando, necessitando de solidão. E sem tanta consciência disso.

O início da pandemia foi tão traumático que me vi aterrorizada em ficar só novamente. Porém, sempre gostei, precisei ficar só. Coisa de quem pensa muito, de quem precisa organizar os pensamentos, de quem necessita escrever. Trocar o dia pela noite, numa casa cheia de gente e barulhos, muito possivelmente, foi minha estratégia desde a infância para vivenciar nuances da minha necessidade por solidão. Sigo apaixonada pela madrugada e por sua energia amena que me permite ficar bem só comigo. 

Quando morei junto com um ex, dividimos um apartamento minúsculo. Só com o tempo, percebi o quanto aquilo me feriu. Dias barulhentos, com televisões ligadas já ao acordar, muita falação e angústias partilhadas me transtornavam. E nem as madrugadas eram só minhas como costumavam ser. Talvez, um dos motivos (porque houveram muitos outros) que essa relação tenha chegado ao fim tenha sido o fato de eu não poder ficar tão só. Não havia espaço. Eram infinitas demandas.

O amor, na perspectiva de Suy, encontra a solidão não como um antônimo. Mas, como parte. Num dos trechos, ela diz: Se não fosse o amor, não seria a solidão. Se não fosse a solidão, não seria o amor. Amor e solidão se fundem e se dependem. E aí, queridas, é onde, por vezes, por ideais de amor equivocados, nos perdemos. Como não sabemos muitas vezes dançar e estar confortavelmente em nossa solidão, fugimos dela, nos fundimos ao outro. Construímos laços de extrema dependência. Nos submetemos. Nos deixamos ser violadas, violentadas.

Também já vivi isso. Ao me perceber dependente, sem lidar com minha solidão, decidi: preciso aprender a ser só. Arrumei um intercâmbio em outro país. Cheguei lá, de início não tão sozinha, mas, depois, sozinha, com duas malas gigantes. Fui viver com pessoas desconhecidas tentando me achar. Ainda me perdi, continuei me perdendo. Até antes da pandemia, quando a vida não estava imbuída de solidão obrigatória, pela primeira vez que morei complemente só, a solidão me atravessou de uma forma não tão gostosa.

Estava lidando com questões familiares um tanto quanto difíceis. E, às vezes, fico imaginando - já disse que sou a doida que gosta de dar sentido às coisas - que, de alguma forma, meus guias, a forças do universo, me prepararam para o que viria. Sei que tenho infinitos privilégios, nunca me faltou nada, isso não significa que ver milhares de pessoas partindo, ter medo de adoecer estando longe, o medo de perder quem amo, todos os absurdos daquele desgoverno nefasto não tenham me angustiado, me adoecido.

Quando voltei para Olinda, em agosto de 2020, mergulhei em novos sentimentos. O medo e o horror da pandemia ainda estavam ali. Porém, a chegada de Nina, minha sobrinha, trouxe para todos muita vida, muita presença. Passamos a morar todos juntos. Na hora da bruxa, revezávamos os braços e os ouvidos para lidar com as angústias de um neném que não sabia lidar com o dia se transformando em noite. Na casa da minha mãe, pude viver minhas madrugadas de solidão, mas nem tanto. Pude ser braço para Nina, permitindo minha irmã e cunhado dormir um pouquinho.

Quando Juli, Augusto e Nina foram para sua casa, algo em mim, de alguma maneira, transbordou. Tudo que comia, vomitava. Tinha distensões abdominais terríveis. Muitos médicos, muitos exames, muitas consultas, até o diagnóstico: síndrome do intestino irritável. Hoje aprendi a conviver. Mesmo sendo alguém que entra em contato com sentimentos, com a solidão, com meus vazios, sou propensa a doenças psicossomáticas. Na época, estava no fim do doutorado, sem saber do futuro, tendo que escrever uma tese, com medo da doença, de ficar sem trabalho, sem dinheiro. Todos nós, de alguma maneira, vivemos nesses últimos anos muitos medos, muitas confusões.

Natural depois de tantos redemoinhos, temermos ainda mais a solidão. Para mim, como nos últimos tempos houveram tantas presenças incríveis, de repente, senti vontade. Tive um sonho simbólico: estava parindo, já conseguia sentir a cabeça do bebê; mas estava cansada e como sabia que ainda iria demorar, pedia para ir para casa para descansar um pouquinho. Acabei mesmo voltando para casa, para minha rotina só minha de lavar a louça antes de fazer o café da manhã, de ir na feira da Glória aos domingos, de frequentar o Aterro do Flamengo, de estar perto de quem precisei também ficar longe. Precisava ressignificar algo que me foi arrancado. E minha solidão é, sem dúvidas, parte disso.


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