Esse discurso de que a gente precisa se amar pode não ser suficiente
O beijo - Klimt
Todo mundo quer amar e ser amado, já podemos começar daí. Quando um bebê chega ao mundo, além de cuidados e proteção ele precisa de muito amor. Acompanhei a chegada da minha sobrinha há quase dois anos de perto. Muito perfeita da titia e cheia de amor. É engraçado perceber como ela pede afeto, atenção. E não faz isso porque é mimada não. É porque isso é o que alimenta a nossa alma.
Quando adultos, podemos ficar num discurso meio budista xangrilá que somos autossuficientes. Não somos mesmo. De fato existem vazios dentro de nós que precisam ser encarados com certo cuidado. Tirando um pouco o machismo da conta, penso que certos sentimentos do qual não temos ainda muita clareza nos transportam para relações violentas e dependentes. Sobre esses vazios, nossa mais honesta sensação de desamparo, há duas percepções que gosto bastante.
A primeira de Freud relaciona o desamparo ao processo de nascimento, quando saímos da unidade e segurança uterina e lidamos com todas as vulnerabilidades. A segunda é espiritual e tem haver com o o nascimento da alma, quando ela foi separada do útero cósmico, de uma unidade de amor incondicional. Ao nascer, fisicamente ou espiritualmente, lidamos com o desamparo, buscamos de modo consciente ou inconsciente o amor e a completude. Às vezes, por falta de clareza, confundimos as energias do ego (medo, domínio, controle) com nossas buscas justamente pela lembrança de unidade já experienciada.
Usamos, por falta de maturidade, os relacionamentos para simular certa completude. E isso nos transporta para lugares sombrios e dolorosos. Não sei se há algum ser humano na Terra que não tenha vivido essas dores. Como uma polaridade oposta, podemos entrar nesse discurso de que nos amar é suficiente. Sim, a gente precisa de autoamor, consciência e autonomia. Mas amar e ser amadas também é necessidade. Não há sentido numa vida ausente de amor. Falo isso a partir das minhas buscas, angústias, de caminhos percorridos onde eu mesma estive desconectada desse tipo de amor.
Colocando o machismo na conta agora, faz tempo que para as mulheres sobram os diversos tipos de violências e desamor. De modo geral, os homens recebem muito mais afeto. Enquanto somos consumidas em série, tratadas como objetos, dominadas, eles recebem de nós mesmas o mais profundo e fiel amor. São escolhidos, admirados, adorados de muitas maneiras quando pouco dão em troca. Vejo isso no dia a dia de muitas formas.
O escroto com sua companheira, que agride, que trai, não fica só. Sempre há uma fila de mulheres à sua disposição. Vários dados, documentários e reportagens mostram, por exemplo, as diferenças entre os afetos recebidos por homens e mulheres dentro dos presídios. Até as mães costumam abandonar as filhas quando presas, nunca os filhos. Muitos homens até se casam dentro da cadeia com mulheres que nem conheciam antes. Ao tempo que tal fato é profundamente bizarro, mostra com nitidez como não temos, nessa porra de sociedade, direito ao amor.
Enquanto mulheres são, em grande maioria, presas por acompanhar seus parceiros no crime, homens acham super normal abandonar suas companheiras quando acometidas de uma doença grave ou quando filhos nascem com alguma disfuncionalidade. Afinal, eles não podem perder a liberdade. Sem contar todos os outros infinitos problemas. Acho que foi Xico Sá que escreveu que o bicho mais fiel do mundo, além do cachorro, é a mulher. E isso é a mais pura verdade. Há muitas exceções, claro.
Ser mulher e precisar ser amada nesse mundo é cruel demais, é cansativo e trabalhoso. São micro e macro violências diárias. A gente precisa estar o tempo todo gritando, falando o óbvio, pedindo cuidado. Nisso, muitas vezes, é mais fácil mesmo ficar só, embarcar nesse discurso de autoamor. Ainda mais nesse momento do mundo que temos muito mais individualismo e uma profunda ilusão de autossuficiência. De consumo como instrumento de prazer e felicidade.
Não sou auto-suficiente. Eu quero amor. Sei que posso, por ser uma mulher forte, transmitir essa imagem. Afinal, confundem fragilidade com necessidade de cuidado e amor. Mesmo sendo forte, também preciso de cuidado. Ninguém é auto-suficiente. Amar e se relacionar não é completude, é muito mais uma jornada. Uma necessária jornada. Que tenhamos sim muito autoamor, mas que a gente também se sinta no direito, merecedora de receber o mais profundo e tranquilo amor.