Por que tantos e tantas ainda votam no inominável?
Os retirantes - Portinari
Não acho a polarização entre esquerda e direita problemática. Uma forma muito humana de agir e perceber a realidade acontece através das polaridades. Homem, mulher, ocidente, oriente, dia, noite e por aí vai. Poderia, por exemplo, me definir como um feminista radical e liberal ao mesmo tempo. Posso até ser cancelada por unir concepções distintas, mas não me importo. Para mim, o lugar de gênero é um dos grandes problemas humanos e precisa ser abolido. Também não sou partidária, apesar de valorizar a coletividade, de definições legais que não respeitem direitos individuais.
Hoje, acusar mulheres de feministas liberais como algo pejorativo, tipo Anitta, virou lugar comum. Sigo acreditando na autonomia e importância do poder material num mundo capitalista. Enquanto homens ganham dinheiro vendendo até luvas para mulheres tirarem o absorvente sem se sujar, acho banal qualquer crítica quando geramos riquezas com nossa arte, corpos ou empreendedorismo, usando ou não as insígnias da liberdade e do feminismo. Mais ou menos como faço com minha loja de sugador de clitóris.
Tracei essa discussão um pouco paradoxa para te mostrar que nossa construção de pensamento não precisa necessariamente ter lado. Não é porque gosto de rosa que também não posso ver o valor do azul. Ou perceber que o rosa, por vezes, pode ser enjoado. Todo e qualquer pensamento crítico deve estar despido de ideologias. A ideologia, em muitos casos, pode ser um óculos que nos deixa cegos e burros. Isso não significa que eu não tenha as minhas. É óbvio que as tenho.
Como pesquisadora, passei a última década estudando o fenômeno conhecido como revolução tecnológica e da informação e como ele tem mudado as lógicas humanas. Se pensarmos há exatos 10 anos atrás o mundo era diferente, ninguém tinha smartphones tão facilmente a palma das mãos. E o que essa comunicação em massa permitiu nos últimos tempos? A que elas nos conectou? Como ela tem mudado nossa forma de pensar? O que de novo temos percebido com ela?
No mundo de hoje, não temos mais tantas referências coletivas vinculadas à nossa condição de nascimento. Enquanto sou olindense e viciada em carnaval, minha irmã mais nova não faz ideia da treta entre a Pitombeira e o Elefante. O que ela entende mesmo é da cultura sul coreana porque ama as séries de lá. Num mundo globalizado tudo é mais cambiável e fluido. Porém, não há bicho mais territorialista que o ser humano. Se não nos territorializamos através do espaço (o que fazemos bastante e sempre), vamos nos territorializar através dos espaços simbólicos. A ideologia é um deles.
A ascensão da do facismo, do trumpismo, do bolsonarismo, dos neoliberais estúpidos que têm acesso ao mercado financeiro (mesmo os pobres como eu que compram umas açõezinhas e já se acham o Elon Musk), é em si um fenômeno da revolução tecnológica da informação. As fake News importam, influenciam. Porém, para mim, o problema vai além. Seu tio reaça, meu tio machista, a racista, o homofóbico, os que não percebem as mazelas e acham que elas se devem a existência do Estado grande, ao se unirem, encontrarm os responsáveis por seus fracassos. E ainda tem coragem de nos chamar de mimizentos, né lasca?
Juntos, em redes, o que eles tem feito também é resistir. O inominável teve mais de 51 milhões de votos porque sob o seu manto há muitas ideologias e crenças, a grande maioria bizarra. Para ter força, eles usam uma das mais antigas armas - narrativa do medo. Padre Kevin, Kelson, o de quadrilha, foi um acerto no debate da Globo. Ao terminar, fiquei arrasada. Sabia que ia dar ruim para o primeiro turno de Lula. Carluxo sabe o poder do medo, usou muito bem disso e fez seu papai subir desde de sempre. Destruir a família, a inocência das crianças e todos os blá, blá, blás tem feito o mundo andar para trás. E não é só no Brasil.
Gosto muito da tese de Yuval Harari sobre o domínio dos homo sapiens sobre si, o meio e sobre as demais espécies humanas. Para ele, em um momento conhecido como revolução cognitiva, desenvolvemos a habilidade de criar e acreditar em narrativas - histórias, mitos e ideologias. Então, passamos a agir coletivamente em função delas. Podemos encarar, por exemplo, a religião como uma crença derivada de uma narrativa. O poder divino dos Reis nada mais é do que uma narrativa. Até hoje matamos em nome de algum Deus ou Rei. Inclusive, do dinheiro (às vezes até a nós mesmos).
Quando agimos em função do medo - em tudo na vida, afinal somos bichos - somos mais cruéis. Territorialistas. Por isso, não importa tudo que aconteceu. Não importa a corrupção das vacinas, não importa “eu não sou coveiro”, não importa imitar pessoas morrendo por falta de ar, não importa as rachadinhas, o orçamento secreto, os imóveis. Nada importa. Unidos através de uma coletividade bizarra, mais de 51 milhões validaram a continuidade de um psicopata. É bem inacreditável. Mas é compreensível. Excesso de ideologia, narrativa do medo e ausência de pensamento crítico.