Você já pensou na nobreza do sentimento do ódio e como ele pode te levar - também - para lugares incríveis?

  Deusa Kali, autor desconhecido

Vivemos numa sociedade de cultura cristã que demoniza o ódio, enquanto defende aos quatro ventos a docilidade. Um dos mais famosos versículos da bíblia diz: ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra; e ao que te houver tirado a capa, não lhe negues também a túnica. Vocês têm noção dos estragos que essas crenças provocam em nossa personalidade? 

Outra face é o caralho! Precisamos ter raiva, tocar fogo. Se deixarmos quem nos fere continuar nos ferindo em nome de uma pseudo bondade, isso só reverbera a nossa falta de amor próprio. Somos pessoas boas quando somos primeiro com nós mesmas. Se não desse valor ao meu ódio, não estaria onde estou, não faria o trabalho que faço. O ódio é um sentimento que aponta para a necessidade de transmutação.

Durante o doutorado, pude estudar como as narrativas, os mitos, incluindo as religiões, moldam boa parte dos nossos comportamentos. Falo disso com frequência porque acho que ainda temos pouca consciência desse fato. Em outras mitologias antigas, por exemplo, temos deusas e deuses mostrando a importante face da fúria, como movimentos naturais.

Sou devota apaixonada pela deusa Kali. Gosto de invocar sua presença quando preciso cortar cabeças, transformar. Kali tem um poder destrutivo, de morte e renascimento. Isso não significa ausência de amor. Muito pelo contrário. Sua fúria é para preservar a vida, o amor. Kali em sua mitologia lembra das polaridades de luz e sombra, morte e vida, ódio e amor.

É bem interessante observarmos que em várias religiões antigas, figuras femininas foram construídas como arquétipos da fúria. Iansã, na africana, é a deusa da tempestade e trovões. Na sociedade ocidental cristã o grande arquétipo que sobrou para as mulheres foi o da Virgem Maria, a que sofre, a que ama incondicionalmente, a que não transa. Um horror! Para mim, isso tem ligação direta com o fato de muitas de nós sermos violentadas sem tanto reagir. Entendem o perigo desse processo?

O perdão foi incutido em nossa cabeça como mantra. Ao invés de cortar a cabeça dos demônios (ou dos homi escroto) como faz Kali, cortamos as nossas próprias, nos oferecemos como mártir para quem nos maltrata. Por isso mesmo, penso que ainda falta fúria, ódio, as mulheres. Para alguns homens também. Pensa quantas coisas há em nossa sociedade que aceitamos quando não deveríamos aceitar?

Quem daqui é senhoras da época do orkut? Quem lembra da famosa comunidade “bonzinho só se fode”. Agora vamos pensar juntas: porque a pessoa “boa” atrai o mal? Eu não acho que seja por aí. Muitas pessoas se portam como boazinhas porque não reconhecem seus limites e porque lhe falta senso de valor próprio. Obviamente, não vai faltar quem tire proveito. E se uma “boazinha” cruza com um narcisista no caminho, ferrou. Se estabelece uma dinâmica terrível e difícil de romper.

Me considero uma pessoa que sabe amar e doar bastante. Mas se precisar de fogo, de cortar cabeças, eu corto. Escrevo tudo isso para dizer que já me senti muito inadequada por ser assim. Talvez você também se sinta. Já fui chamada de mimada, de difícil só por impor meus limites quando o outro estava sambando na minha cara. Obviamente, nem sempre os impus ou demorei para impor. Também já senti muita culpa quando coloquei. Hoje, tenho celebrado muito mais minha fúria e dado um imenso valor a face do ódio que também habita em mim. Como canta Karina Buhr: eu sou um monstro!


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