Eu, menina branca, nunca fui parada pela polícia. Depois de me relacionar com João, isso passou a fazer parte da rotina.
Sou o tipo de pessoa que trabalha incansavelmente para poder viajar. Como dizem, tenho alma de cigano. Sou craque em saber usar milhas, antes de ter, “roubava” as da minha mãe e avó, sou ótima em achar boas hospedagens. Sempre dei um jeito de conseguir andar por aí, com mais ou menos dinheiro, de acordo com o momento da minha vida. Conheci João no Festival de Inverno de Garanhuns no ano passado, numa viagem. Unimos nosso espírito cigano. Agora já estamos planejando levar Antônio em nossas aventuras.
Na primeira viagem aérea que fizemos juntos, saímos de Recife e fomos para o Rio de Janeiro, cidade que morei por muitos anos. Na sequência, viajamos para Buenos Aires e voltamos por São Paulo, com uma parada de dois dias para aproveitar a conexão. Em todos os trechos dessa nossa viagem, todos, abriram nossas malas. Quando chegamos no Rio de Janeiro, a bagagem que estava com cadeado normal, esses de chavinha, chegou sem nada. O restante, de código numérico, com chave mestre, deve ter sido aberta sem nosso conhecimento.
Verifiquei o que tinha acontecido com a companhia aérea, sem conclusões a respeito. Logo no primeiro trecho, fizemos um registro de abertura da bagagem e rompimento do cadeado para deixar documentado. O peso das bagagens era o mesmo, nada havia saído do lugar. No restante dos trechos, colocamos lacres e não havia nenhum quando pegamos a bagagem na esteira. Então, concluímos: fiscalização da polícia federal. A companhia aérea nos informou que poderia ser uma possibilidade. Achamos estranho. Afinal, sem a nossa presença e sem deixar nenhum tipo de comunicado.
Há algumas semanas, voltamos ao Rio de Janeiro para comemorar um ano de relacionamento e também a formalização da nossa união. Quase uma lua de mel. Alugamos um carro. Nos hospedamos em Araras, na região Serrana, e na Glória. Quando estava na cidade do Rio, dirigindo na orla de Ipanema, com João no passageiro, duas motos da polícia militar nos pararam para fazer revista. Perguntaram para onde estávamos indo, com o que trabalhávamos, abriram a mala do carro, a mochila, minha bolsa, olharam nossos documentos e nos liberaram. Alguns quilômetros à frente, na Avenida Niemeyer, uma blitz novamente nos parou para a mesma averiguação. Interessante, não?!
Na semana passada, quando estávamos pegando o voo para Bariloche, no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, junto com minha família (mãe, irmã, cunhado, sobrinha de três anos e enteado de nove), passamos por uma revista extremamente desagradável no processo de embarque. Apenas eu e João. Duas policiais nos pararam, nos apalparam, abriram bolsas e mochilas, verificaram o conteúdo de todos os lugares e registraram nossos nomes e números de passaportes.
Não preciso dizer, sabemos porque de uma hora para outra me tornei suspeita. O porquê, mesmo morando no Rio de Janeiro por muitos anos, nunca ter sido abordada e no mesmo dia, em menos de uma hora, ser duas vezes. Já estive em muitos países, nunca haviam me tratado mal. Cheguei a Londres com medo, estava só, com vinte e poucos anos e as histórias que escutava sobre a imigração no país não eram cortês. Fui super bem tratada. Vivemos num planeta que encara a cor do meu companheiro como suspeita. Por estar ao seu lado, automaticamente, passei a ser suspeita. E, obviamente, não quero comparar minha realidade à dele.
E, sim, isso é triste. Mesmo com esses inconvenientes, sei: temos certa proteção. Moramos num bairro de classe média, frequentamos lugares de pessoas com maior poder aquisitivo. Muito dificilmente, meu apartamento será invadido e meu filho, mesmo criança, “confundido” com um bandido, como costuma acontecer em comunidades. É improvável que a escola que ele estude seja fechada ou alvejada por operações policiais.
Mesmo assim, não sei que tipo de abordagem ou fiscalização ele poderá vivenciar. Como o Estado, seja do Brasil ou de qualquer outro lugar, vai tratá-lo ou constrangê-lo. E não importa quanto dinheiro seus pais tenham. A gente sabe que não importa. Porque essa estrutura social mesquinha, que produziu uma infinidade de injustiças e mazelas para as pessoas pretas, por muitos anos ainda deve permanecer.