Se há uma porção a ser curada, uma energia a ser transformada, é a energia masculina
Lâmpada filosófica de René Magritte
Há anos observo e estudo como o mercado tem se apropriado das dores das mulheres para criar cursos, produtos digitais, com a alcunha de que o feminino precisa ser curado. Se aproveitam da falta de amor que recebemos, de nossa dose de carência, para dizer faça isso ou aquilo como promessa de encontrarmos um amor decente na próxima esquina. Como se não faltasse, de modo geral, caráter aos homens; na forma como eles se relacionam com a gente, como eles nos tratam.
As notícias que estampam as mais diversas fofocas, o que ouvimos, o que vivemos não me deixa mentir. E antes que me venham falar de exceções, de mulheres sem caráter, digo: há um sistema muito bem articulado que coloca confortavelmente os homens na posição de cafajestes, violentadores. Essa é a questão. Neymar é um exemplo muito nítido de uma construção de masculinidade cagada. O que ele tem, o que ele é, foi vendido para os homens como fórmula de sucesso. Esse é o sistema a que estou questionando e me referindo.
Não por acaso, muitos homens buscam desesperadamente dinheiro, destaque profissional, um corpo perfeito, carros caros, com o objetivo de consumir mais e mais mulheres, sentir algum nível de poder, alimentar seus egos frágeis. Aos homens, não foi ensinado o poder da real hombridade, do caráter, cuidado e amor. Saiba: a sucessão de violências que você vive, que eu vivo, não são frutos das nossas inabilidades ou dedos podres. Elas são fruto de um processo muito triste que produziu homens fracos, egoístas, violadores e inábeis.
Por mais que, em algum lugar, eles sejam algozes, eles também são vítimas. Se fizeram dessa forma por inúmeras violências também sofridas. Escrevi a peça chamada “Eu sou o homem” porque acredito que há um masculino a ser urgentemente compreendido e transformado. Coletivamente, precisamos ser didáticas nesse aspecto. Precisamos compor referências de masculinidade com caráter para além do super herói. O arquétipo do super herói é tão cruel para os homens como o da princesa é para as mulheres.
Nessa peça, uma das personagens narra sua experiência com homens. Sua fala inicial diz: Por que vocês são tão babacas, hein? Por que do nada vocês somem? Vocês não têm vergonha de se mostrar um ser humano tão desprezível e cruel? Na sequência, conta de quando foi abandonada durante uma festa de réveillon. O cara foi buscar uma cerveja e sumiu. Adivinha com quem isso aconteceu? Há anos viajei para a praia com um rapaz, o convite partiu dele. Após as doze badaladas, sumiços, desculpas esfarrapadas.
Provavelmente, pensou que me apaixonaria ou temeu ele mesmo se apaixonar e não soube lidar. Ou sei lá... Naquele momento, estava mais afim de curtir e transar. Homens não sabem lidar com sentimentos, não sabem se comunicar. Mas não se importam em ser grandes babacas. Não se incomodam em ferir. Um tempo desses, essa criatura teve a pachorra de mandar a prima vir falar comigo numa festa porque queria vir me pedir perdão. Ele que trate de lidar com a culpa. Não sou eu que vou, depois de tanto tempo, deixar confortável para ele. Ainda mais diante de tamanha falta de hombridade.
Se percebo que feri alguém, faço questão de pedir desculpas imediatamente. No caso dele, nunca houve uma mensagem, mesmo, soube a pouco, estando há tantos anos incomodado. Falo desse comportamento porque “sumir”, “fugir” é um clássico do mundo masculino. Aquela história do homem que foi comprar cigarros e nunca mais voltou. E, se esse é um clássico, há razões para ser. Há um sistema que os perpetua como grandes covardes. É exaustivo termos que ficar clamando por respeito e cuidado. A gente não deveria precisar ficar ensinando, falando o óbvio.
Diante de tantas violências, o que nos resta é impor limites, nos afastar, não tolerar. Porém, a cada novo encontro, a cada novo apaixonamento podemos ser feridas novamente. Qual mulher não está cheia de traumas? Sem esperança depois de tantas experiências difíceis? Por isso, digo: se há um feminino - obviamente - ferido, há um masculino completamente descompensado que fere sem parar. Logo, é o masculino que precisa ser curado. Observo as mesmas dinâmicas em relações homossexuais e algumas mulheres também usam em suas relações com homens o mesmo código cagado da masculinidade. É complexo.
Da minha parte, também ando exausta de precisar compor tendo esse aspecto constantemente como pano de fundo. Adoraria escrever sobre um amor “toda beleza”, cheio de entrega e tesão, como fez Rubel. Mas o que fazer se essas violências gritam? Se minhas amigas me ligam chorando por conta de homens cagados? É chegado o tempo dos homens reconhecerem os danos que esse sistema impôs e começarem a criar estratégias individuais e coletivas de transformação. Se não fazem isso, mais uma vez, estarão colocando esse peso apenas sob nossas costas. E chega disso, né?!