Por que eles nos desqualificam nos chamando de feias? De velhas?
Autorretrato com um vestido de veludo de Frida Kahlo
Antes de falar dos homi sem noção que me xingam, quero ressaltar o quanto recebo amor, tanto virtualmente, quanto pessoalmente. Não tenho nenhuma dúvida da importância do meu trabalho. Muito mais do que vender um produto, que considero uma excelente ferramenta dentro do processo que proponho, boa parte do meu trabalho é questionar os padrões de gênero e todas as violências que esses padrões geram para homens, mulheres, pessoas que não se reconhecem nem como homens ou como mulheres.
Esses dias estava rolando o feed do Instagram e me apareceu um vídeo, acho que Deleuze narrava o quanto os filósofos e escritores são acometidos por diversos problemas de saúde por enxergar, perceber, por vezes, o que muitos não percebem. Já contei que sou uma pessoa que vomita com tudo, tenho sérios problemas de digestão, uma infinidade de restrições alimentares. De fato, não consigo digerir um monte de coisa. Crio tendo essas questões como pano de fundo, não porque sou rancorosa como me xingam. É por ser bastante indigesto ver a gente sofrer por uma construção social tosca e sem sentido.
Desde muito pequena, já questionava. Pouco me adequei. Mas, obviamente, sofri todas as nuances da violência de gênero. Na minha casa, habitada por muitas mulheres, o corpo sempre foi uma questão. Aos dezesseis anos fui levada pela minha avó a um médico para emagrecer, devia pesar apenas 56kg. Foi quando tomei pela primeira vez inibidor de apetite. De profissionais da saúde, já escutei coisas como: você é muito baixinha, o que uma pessoa normal come já é muito para você. Minha irmã foi chamada de sapa, depois que emagrecesse viraria a “princesa”. Ao iniciar um relacionamento, engordei. Minha mãe me pediu para ir numa nutricionista, não podia me descuidar para meu namorado não me deixar.
Minha avó só parou de tomar remédio para emagrecer aos 70 porque, estando mais consciente do problema, implorei. Minha mãe não tem mais esse pensamento, mas tem horror a ganhar uns quilos a mais. Também não gosto de engordar, mas, às vezes, acontece. Minha relação com meu corpo não é a coisa mais perfeita, não tinha como ser. Porém, hoje sei qual beleza importa, o que me interessa. Apesar de tudo, sempre me achei bonita, gostosa e extremamente interessante.
O que não sou é subserviente. Se um dia quiser parar de beber cerveja (acho difícil), fazer muito mais agachamentos e pesar 10kg a menos vai ser porque eu tive vontade, não para me adequar. Em meu processo, tenho aprendido que não sou objeto para o desejo do outro, sou sujeito dos meus próprios desejos e vontades. O meio influencia, não tenho dúvidas, mas sempre fui boa em construir minha originalidade. Nunca suportei ser igual.
Para mim, a beleza reside no jeitinho particular de cada um. É sobre isso que piro quando me apaixono. Guardo na memória pedaços de vários amores. Os dedos tronchinhos da mão, a forma de sorrir, o jeitinho de apertar os olhos, o adormecer sereno, o modo como levanta os braços para se espreguiçar. O foda é aprendermos que para sermos amadas devemos ter certos corpos, sorrisos alinhados, características x, y, z. E há quem de fato se atraia por padrões pastiches, quem busque eles em si e no outro. Acho de uma pobreza sem tamanho.
Na prateleira do amor, como cunhou Valeska Zanello, o capital mais importante da mulher sempre foi sua aparência, sua juventude. Esposa troféu serve para aumentar o valor social de um homem perante aos demais. Não por acaso, o inominável chamou de feia a mulher do Presidente Macron, uma leitora me lembrou. Também temos aquele episódio inaceitável do “não te estupro porque você não merece”. Ou seja: uma mulher não “merece” ser estuprada porque o monstro do outro lado lhe julga feia. Vocês têm noção desse horror? E, ao mesmo tempo, o quanto esse horror revela a visão que se tem sobre as mulheres?
No fim, de modo pouco consciente, a beleza e juventude da mulher vão sendo entendidos como suas maiores virtudes. Não as músicas que compomos, os livros que escrevemos, nossas descobertas científicas, nosso poder político. Esse tipo de valor é celebrado apenas para os homens. Não por acaso, a beleza deles não importa tanto. Natural que minha avó tenha tomado remédio para emagrecer por quase toda vida, minha mãe tenha tomado por um tempo e eu também. Minha sobrinha, provavelmente, não chegará nesse lugar. Estamos, cada vez mais, tendo consciência do quão horrível ele é.
Como trabalho justamente com o despertar de consciência em minhas criações, incomodo. Atacar minha aparência é dizer que não tenho valor como mulher, que não sou escolhida, que meu problema é que ninguém me quer. E assim, negar para si toda a estrutura machista. Dizer que escrevo mal, ninguém nunca disse. Isso, talvez, me afetasse mais. Mas me chamar de feia, mocoronga e brega, não me afeta. Sei exatamente de qual lugar esse xingamento vem. E ele me deixa até orgulhosa do efeito do meu trabalho. Não estou aqui para deixar confortável. Se me fazem vomitar, o mínimo que posso fazer é azucrinar.