Seria a vida caminhar ao redor de um buraco chamado insatisfação?

Uma estudante  - Anita Malfatti
Uma estudante  - Anita Malfatti

Sol em Touro, eclipse, movimentos recentes, a pouca perspectiva de futuro nesse Brasil pandêmico de Bolsonaro me deram uma agonia danada. Fiquei insatisfeita. Me sentindo completamente insatisfeita. E comecei a pensar em que momento da vida, de fato, me senti plena de satisfação. Tem sido um exercício interessante e assustador. Me mostra o quanto a insatisfação sempre esteve ao meu lado. Logo eu, que sempre pedi ao universo a sorte de um amor tranquilo, fui casar logo com a insatisfação. Só para avisar, escrevo quase como falo numa sessão de análise. Encontrando pensamentos perdidos. Digo isso porque acabei de me lembrar de uma coisa. Odeio mudanças, inseguranças, essas contingências da vida. Agora estou vivendo todas as nuances da incerteza. A insatisfação vem daí?

Sofri bastante quando tive que mudar de colégio na oitava série. O Imaculado, onde estudei, não tinha ensino médio. Ter que decidir para qual nova escola iria foi angustiante. Passei dias tristes, vagando em busca de respostas. Quase como estou agora. Chorei horrores no supermercado após a missa de despedida da turma. Minha mãe me chamou de dramática. Não entendeu o porquê daquilo tudo. Era apenas o fim. A separação. Eu não queria sair do conforto do conhecido e ir em direção ao novo. Além do que, uma nova etapa se aproximava. Pensar no futuro profissional, vestibular. O que fazer da vida além de ser feliz com os amigos.

Os anos seguintes tiveram lá seu brilho, sua beleza. Mas nada como o último ano no imaculado. Como esperado, houve pressão. Antes do vestibular, tive doença de pele, muitos episódios de infecção urinária, comecei a tomar calmante natural receitado pela minha pediatra. Foi difícil. E eu tinha que passar. E eu tinha que escolher. E eu passei. E eu escolhi. E eu segui. Lembrei de outra coisa. Antes de sair do Imaculado, escrevi um e-mail para escola falando o quanto tinha sido feliz ali, de como todos eram uma família para mim. Um dia, ao ir na coordenação, acabei encontrando o e-mail impresso preso no mural. Fiquei tocada com o gesto. Como faço agora, escrever sempre foi algo que me ajudou. Só há pouco tempo tenho consciência disso.

Voltando a insatisfação. Ou melhor, a satisfação. Houve outro período durante a faculdade mais ou menos pleno. Estava recém solteira e pude me aprofundar em coisas que não vivia há tempos. Tipo: estar rodeada de amigos, curtir a vida sem tanta moldura, descobrir coisas novas, sentimentos novos, angústias novas, como a da paixão que você encontra sem querer encontrar. Acho que isso deve ter sido em 2008. Posso dizer que foi um ano curioso. Havia esperança no futuro, algumas conquistas. 

Depois, não sei. Momentos de felicidade tenho muitos. Sigo com pessoas incríveis. Nada de concreto me falta. Só futuro. Não quero ser a dramática de sempre, mas o mundo não anda cor-de-rosa. Se é que um dia já foi… Nos últimos anos tem estado mais dilacerante. Ou tudo, com a revolução tecnológica e da informação, tem estado - para os despertos - mais evidente. Também me tornei adulta. Expectativas foram quebradas. Muitos encontros e desencontros. Com a escolha profissional, com a escrita, com a arte, com a criação. Muito esforço, muita paixão, muito trabalho, num mundo cruel, quebrando diariamente nossa cara. 

Desculpa não estar doce. Ando chorando, perdida, igual aquela menina da oitava série. Ali eu só tinha que escolher entre duas escolas para cursar o ensino médio. Agora eu tenho infinitas possibilidades e não sei. Quer dizer, até sei. Mas preciso me sustentar. Preciso me emancipar. Já era para isso ter rolado. O capitalismo é cruel. Esmaga a gente não importa todo o esforço. Mas, por enquanto, não há nada a ser feito a não ser se esforçar mais e melhor escolher. E não errar. E dar a cartada mais certeira. E saber vender meu peixe. Tem como não ficar exausta? Insatisfeita?

Viver injustiças e perceber tantas injustiças é adoecedor. A gente se inebria para tentar esquecer. Bebe, come, samba, freva. Se apaixona por um novo trabalho. Por uma nova possibilidade de amor. Por, talvez, mais uma mudança de cidade. Ou acredita no inesperado. De que transformações vão acontecer. Assim, meio do nada, vão acontecer. A vida é mudança, transmutação. É preciso desapego. Coisa que falta no meu mapa astral. 

Por tudo isso, relacionamentos costumam ser espaços de absoluta satisfação - companhia, cafuné, conversas infindáveis, conexão sublime, sexo gostoso - e também das maiores insatisfações. Controle, desejos tolhidos, falta de comunicação, não aceitar o fim, pode transformar nossa vida numa prisão. Igualzinho, não se permitir viver um novo amor. Com relacionamentos, estamos sempre na corda bamba. Na verdade, com tudo. 

Não escrevo buscando confrontar ou superar a insatisfação. Talvez, queira apenas compreendê-la. Quem sabe, aprender a dormir de conchinha com ela. E saber que, às vezes, seu abraço irá me paralisar. Vou chorar, vou fazer drama. Vou querer morrer ou me inebriar para não lidar. No fim, não terei escolhas. Quero sim ter mais coragem para escolher. Quero acertar. Mas é bem provável que vá  errar. A gente erra o tempo todo. E a culpa não é só nossa. É de tudo que aprendemos com a família, com o mundo. Com as crenças cagadas que nos permeiam. Nos sentimos inseguros, frágeis, não merecedores. Nos submetemos por medo. Sabotamos nossos desejos. Sabotamos o tempo todo.

Desde 2008, ano após o fim de um longo relacionamento, tenho me movido por uma vontade absoluta de ser eu. De viver minhas vontades, inspirações, desejos possíveis. De aprender a ser livre. Me livrar de dependências. De ser um pouco desapego. Não tinha como fazer esse percurso se não fosse pela insatisfação. Não é fácil. Não tem sido. Eu podia ser um tiquinho mais satisfeita. Escrevo, muito possivelmente, por isso. Para isso. De alguma maneira, devo colaborar com o mundo estando nesse lugar. Se esse é meu papel, só preciso ser melhor remunerada. Peço mais nada. Depois dessa crônica-terapia, tentarei namorar de forma mais satisfeita a insatisfação. Pode se acomodar do meu lado, querida. Me abraça!


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