O amor tem sido vivido como fórmula de sofrimento. Não por acaso, estamos tão sem esperanças... Mas, acredito: podemos transformar.

O sonho de Marc Chagall

“É exaustivo passar constantemente por isso”, minhas amigas dizem, eu digo, quando nos referimos às micro e macro violências praticadas pelos homens que nos relacionamos. Obviamente, ficamos sem esperança em topar com pessoas decentes diante de constantes atropelos. Mesmo aquele cara que a gente julga ser legal acaba fazendo merda. Engraçado, ultimamente tenho tido uns sonhos bem simbólicos com cocô. Hoje vamos olhar de pertinho para essa parte que fede.

Num dos meus relacionamentos mais longos, que não chegou a ser um relacionamento formal/convencional, tive oportunidade de conversar bastante do porquê de sua necessidade compulsiva por trair (não a mim, não tínhamos esse acordo). Descobri: seu comportamento não era diferente do pai, do avô. Reconhecia o sofrimento das mulheres, a misoginia, a inveja que os homens sentem de nós (ele mesmo admitiu sentir). Mesmo assim, mesmo querendo, não conseguia sair desse lugar. Sofreu horrores por ter se separado da mãe dos filhos. Era louco/alucinado por mim, mas, obviamente, também me perdeu. 

Noutro relacionamento, esse sério e convencional, fui muito traída. Como era novinha, ficava intrigada do porquê disso, já que estar comigo foi seu grande desejo. Virginiano, extremamente inseguro, usava as paqueras paralelas e os casinhos para sentir algum nível de poder, se sentir mais homem, penso eu. Por anos me culpei por ter, talvez, contribuído com sua insegurança, com meu jeito, com minha demora em querer engatar o relacionamento. Essa relação me marcou de forma profunda. Com ela percebi o quanto o machismo e os humanos desequilíbrios são capazes de matar sentimentos tão bonitos. 

O livro que estou escrevendo mergulha justamente nesse universo para mapear muitos desses problemas. Às vezes, é tortuoso escrevê-lo. Além de usar como referência minhas próprias histórias para ficcionalizar tantos sofrimentos, me bate angústias. Outro dia, estava debatendo com minha terapeuta sobre qual perfil de homem pode ser menos cagado. O intelectual de esquerda, consciente do racismo, do machismo, foi o que mais me violentou. Obviamente, ele não deve se enxergar, não deve encarar sua própria fragilidade.

De verdade, não sei. Mesmo os caras que admiro, que são inteligentes, conectados com as injustiças, se mostram inábeis. Agem de formas injustas. E pior, ainda tentam me culpar pelas suas atitudes para não assumir responsabilidades. Não que eu seja perfeita, sem defeitos. Também tenho minhas questões. Já fui extremamente imatura e violenta. Porém, nunca enganei, nunca trai. Tento agir com o máximo de responsabilidade afetiva. Tento comunicar o que quero, o que não quero, impor meus limites. Tento não manipular, diminuir, não deixar meu ego me dominar. 

Noto que estamos imersas num discurso de amor próprio como se esse amor próprio fosse condição para encontrarmos relações saudáveis. Não tenho dúvidas da sua importância. Porém, só em raros momentos meu amor próprio não esteve em alta, mesmo assim, isso não me impediu de viver todas as nuances das violências do machismo. O amor próprio foi fundamental para me ajudar a sair das relações. Mas não evitou nada. E na maior parte delas, estive com homens apaixonados, dedicados. E isso também não foi suficiente. 

Também estamos culpando com frequência o amor romântico. Eu discordo. Não me frustrei pela poesia que me escreveram ou deixaram de me escrever. Me frustrei pela forma violenta e desimportante que me trataram. Não nego, vivemos numa cultura que nos fez projetar o príncipe encantado em cada cara, em desejar ser uma donzela salva, em colocar o amor na frente de tudo. E isso é problemático. Mas, superar esses paradigmas, apesar de necessário, ainda não me parece suficiente. Inclusive, já devo tê-los superado. Já me salvo. Sempre me priorizei. Mesmo assim, continuo me deparando com homens cagados.

Há tempos, recebi uma mensagem de um amigo. Havia se autossabotado de uma forma terrível. Por onde passa, por ser completamente desestruturado, desestrutura. As mulheres com quem se relaciona precisam recolher os cacos após o fim. E ele segue despedaçado. Meu conselho foi: fazer terapia pelo menos duas vezes por semana, entrar num grupo desses que debate os efeitos da masculinidade. Suspeito que a maior parte dos homens, mesmo sofrendo, não tem noção do mal que causam. Sofrem mais por perder algo ao invés de olhar para os buracos perfurados. 

Tem outra citação de Eckhart Tolle que gosto muito, ele diz: reconhecer a própria loucura marca, obviamente, o surgimento da sanidade. Na minha visão, poderemos construir relações saudáveis - não tenho dúvidas, esse dia vai chegar - quando reconhecermos a nossa loucura (o machismo marca grande parte dela) e buscarmos ativamente formas de transmutar. Quando queremos ter um corpo saudável, não precisamos adquirir hábitos saudáveis de alimentação, rotinas de exercício? Não tem como amar bonito se a gente não se trabalhar, sem estarmos conscientes, despertas. Interessados nisso. É nessa salvação que acredito.


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Nos colocam tanta culpa, mas, não sei como, consegui não segurar muitas delas.

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Por que eles nos desqualificam nos chamando de feias? De velhas?