Nos colocam tanta culpa, mas, não sei como, consegui não segurar muitas delas.

O vidro da casa de René Magritte 

Vocês já perceberam que existe um padrão muito comum de culpar as mulheres por coisas que não são culpas nossas? E, ao mesmo tempo, um movimento de isentar os homens das suas responsabilidades? Tenho tantas memórias disso. Infinitas memórias. Nas coisas pequenas e nas coisas grandes.

Na última crônica, escrevi relatando as violências sofridas cotidianamente por um sistema que convencionamos chamar de machismo. Alguns comentários ainda culpam as mulheres. “Topam tudo por um pinto.” Nunca é sobre o outro, é sobre você. “Quantas mulheres aqui sabem se valorizar?”

Numa ocasião, uma terapeuta já quis me culpar por um sumiço de um homem. Não sei como não me agarrei nessa culpa. Percebi de pronte o machismo dela. Sua percepção foi de que coloquei muita pressão no pobre rapaz porque perguntei: se me passar covid você vai cuidar de mim? Estava morando no Rio de Janeiro na época, longe da minha família, naquele horror da pandemia. Estava com medo do que poderia acontecer. E se a gente queria se encontrar, minha conversa com ele não foi um pedido de casamento. Foi para verificar seu nível de cuidado. 

Porém, minha terapeuta não conseguiu ter esse nível de clareza. Muito provavelmente, as crenças sobre a culpa da mulher ainda estão muito enraizadas no seu subconsciente. Afinal, vivemos uma sociedade de cultura cristã que concebeu a criação do mundo a partir do pecado de Eva. Vocês tem noção do quanto isso é pesado? E de que é  uma poderosa estratégia de dominação?

As mulheres precisam fazer de tudo para não serem mortas, estupradas. Nossas mães nos treinam desde muito novas com um monte de culpas também com a intenção de nos proteger. Sabem o quanto o mundo é cruel com as mulheres. Somos julgadas se transamos muito, pouco. Somos julgadas por tudo. Absolutamente tudo.

Me veio agora uma memória terrível. Na abertura dos jogos internos da escola uma colega fez uma dança solo muito bonita. Porém, a plateia gritou do outro lado: baleia, baleia, baleia. Imagina quanta culpa essa menina não sentiu de estar ali. São infinitos pesos colocados sobre nós. Não que homens não recebam alguns deles. Porém, ao contrário de nós, me parece que eles são treinados para não assumir responsabilidades. É algo estrutural. E fica registrado no íntimo do nosso subconsciente.

Uma amiga já foi chamada pelo seu terapeuta, esse nitidamente abusivo e machista, de trator por ser uma pessoa resolutiva. “Desse jeito vai ser difícil um homem estar com você.” Quando ela me contou, aperreada com essa crítica e culpa, imediatamente o chamei de machista. Tentei lhe mostrar outra perspectiva. Ser uma pessoa resolutiva é uma das suas grandes qualidades. Fodam-se os homens que se sentem diminuídos com isso. O problema está do outro lado.

Percebem que há uma estratégia para nos adequarmos às inabilidades do outro? Dentro dessa estrutura social dos últimos séculos, o papel da mulher foi o da servidão. Agora me diz: como é possível dominar um ser sem fazê-lo se sentir pequeno? Por isso, tudo é culpa nossa. Por isso, escutamos desde muito novas “essa menina é muito difícil”. Sem perceber, a gente culpa umas as outras por responsabilidades que não são nossas. Escuto com frequência: a culpa do machismo é das mães que criam seus filhos assim. 

Devo ter vindo mesmo com uns chips trocados para poder fazer o trabalho que faço. Nunca senti culpa em ter prazer, em gozar. Muitas vezes, cuspi e cuspo de volta as várias culpas que tentam constantemente me colocar. Que tentam impor sobre as mulheres. Para mim, há um trabalho individual e coletivo a ser feito: nos despirmos das infinitas culpas que estrategicamente recaem sobre nós.


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O amor mais lindo e perene é o da amizade, principalmente entre mulheres.

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O amor tem sido vivido como fórmula de sofrimento. Não por acaso, estamos tão sem esperanças... Mas, acredito: podemos transformar.