Depois da agressão, ele dançava comigo
Dança em Bougival - Renoir
Já tentei muito encontrar a tradução de uma cartilha alemã que indicava algumas características de relações abusivas. Foi ela, praticamente, que me salvou. Alguém a compartilhou no Facebook há muitos anos atrás. Na época, quase ninguém falava sobre o assunto. O termo relação abusiva não estava no meu vocabulário.
Um dos pontos que mais me chamou atenção foi: depois de uma briga intensa, ele lhe pega nos braços e dança romanticamente com você. Isso acontecia com frequência. Conversando com uma amiga, descobri o mesmo padrão numa relação violenta vivenciada por ela também há tempos atrás. Me relatou: depois de discussão acalorada, onde foi xingada dos piores absurdos, ele parou o carro, pediu para ela sair e dançaram romanticamente embaixo da chuva.
Vamos pensar juntas aqui: por que esse comportamento é comum entre abusadores? Por que reproduzir cenas de filmes românticos está no imaginário deles? De alguma maneira, eles sabem que mimetizar esses símbolos são estratégias eficazes de reverter as violências praticadas e manipular. Relações abusivas estão centradas na manipulação. A violência, o feminicídio são manipulação. Residem numa completa não aceitação da autonomia do outro. “Se você não serve aos meus desejos, você não merece mais existir.” É isso o que passa na cabeça dos homens que matam.
Adoraria não precisar falar mais disso. De poder escrever algo mais engraçado e leve. Por exemplo, de como foi emocionante ontem a despedida de Milton nos palcos. O quanto a existência dele, de Gal, que nos deixou semana passada, devem ser festejadas. Além de emocionar, a arte nos salva porque nos ajuda a nos conectar com o amor em essência. E o amor em essência requer um estado muito consciente de não manipulação, de aceitação integral da liberdade e existência do outro.
Há um tempo me vi apaixonada por um serzinho maravilhoso. Senti quase uma compulsão por prender ele a mim. Por dominar e não deixar ninguém mais chegar perto. Um sentimento bem maluco. Ainda bem que identifiquei essa loucura da minha cabeça. De forma muito consciente, tenho feito um esforço enorme para não manipular. Para não fazer um comportamento “a” esperando um comportamento “b”. Tenho conseguido, mas, às vezes, me pego cometendo pequenos atos de manipulação.
Some, some que ele vem atrás, pianinho. Sim, isso é manipulação. Biscoitagens, por vezes, são nítidas estratégias de manipulação. Seguir, parar de seguir, silenciar, assistir aos stories, não assistir, por vezes, estão carregados de intenção de manipulação. O ser humano é bicho deveras manipulador e esse comportamento pode nos levar a cometer violências físicas e psicológicas. Principalmente os homens porque a eles, desde miúdos, é dito de diversas formas, inclusive simbólicas, que precisam ter o controle sobre tudo. E ninguém controla nada. Nem ninguém.
O machismo precisa, na minha opinião, ser encarado como uma patologia social e os profissionais de saúde precisam ser melhores treinados para tratá-lo. Poucos são os terapeutas que têm essa habilidade. Muitos, inclusive muitas mulheres, reproduzem barbaridades machistas em seus consultórios. Manipulam seus pacientes a partir de suas crenças mais inconscientes. Como a terapeuta de uma amiga que queria a convencer a ratear o casamento com o pai de seu filho para a família não ser “desfeita”.
Dentro desse bololô, me interessa refletir sobre o lugar de dependência da mulher. Por que nos prendemos às relações tóxicas, por que temos dificuldade de sair delas. A ideia de um amor salvador meio a Bela e a Fera está no nosso inconsciente. Como o felizes para sempre e um monte de merda mais. Minha hipótese é de que também, diante de todas as lógicas construídas, só nos entendemos como sujeitos a partir da presença de um homem em nossa vida. Estar só significa não valor. Para nos protegermos de relações violentas precisamos quebrar diversos padrões que estão no nosso inconsciente.
Aprender a construir relações saudáveis é minha jornada. Não nasci sabendo. Relações saudáveis precisam de consciência para não praticarmos atos de manipulação. Eventualmente, vamos falhar. Fato. Mas se já tivermos essa percepção, é meio caminho andado. O oposto da manipulação é um lugar de aceitação que ninguém existe para nos servir. E não tem nada de mal em desejarmos algo. Uma companhia, um relacionamento, uma noite intensa de sexo e amor. A gente pode comunicar nossos desejos sem manipular. Convidar o outro. E tudo bem se não fomos correspondidos. Isso não diz sobre o nosso valor. É algo simples, mas difícil de ser internalizado e percebido. Não manipular requer um esforço imenso.