A maioria dos abusadores não são psicopatas, só foram socializados para serem monstros

Saturno devorando seu filho - Francisco Goya

Lembro de na escola, com uns 12 anos, saber do nome da mãe e irmã dos meus amigos de sala. Havia musiquinhas esdrúxulas citando que vou “comer” ciclana ou pegar “beltrana”. Saberia ainda dizer o nome de várias dessas mulheres violentadas por meninos de 11 anos. Onde meus amigos aprenderam esse tipo de comportamento? Onde entenderam que esse era o tipo de piada que deveriam fazer um com o outro? O que está por detrás destas falas?

Algumas mulheres comentaram que a atitude de dançar após uma agressão mencionada no texto passado se devia a um comportamento psicopata. Não, não é um comportamento de psicopata. É um comportamento patológico derivado do machismo, muito comum entre homens. Nossa sociedade os empurra para esse lugar. Enquanto produzimos abusadores em série, colocamos as mulheres no lugar de dependência. E por mais que essa dependência ainda possa ser financeira, ela é muito mais emocional. 

Muitas de nós, de todas as classes e cores, são roubadas pelos seus companheiros. Contei essa história no filme que escrevi na minha tese de doutorado. Ele mapeia a trajetória de mulheres diante do acesso à moradia. É uma ficção ambientada em Caruaru e na sua relação com a feira da Sulanca. No processo de criação, defini a trajetória das personagens e entrevistei uma da vida real com um contexto semelhante à desenhada. Na sinopse inicial, havia previsto: a mãe da personagem principal sofre roubos e violência de seu companheiro. O impressionante foi identificar na entrevista a mesma realidade.

Intuitivamente, diria que se a primeira onda da revolução feminista nos empurrou em direção a autonomia financeira - de modo, obviamente, diferente para mulheres brancas e negras -, nosso desafio atual mais relevante é nos livrar da dependência emocional. Por mais que os salários ainda não sejam equiparados, já subimos degraus. No Brasil, também tem havido políticas de suporte à mulher. Ainda está longe de ser o suficiente, sabemos. Assistindo a biografia de J. K. Rowling, agredida pelo companheiro, descobri que ela recebeu do Estado moradia e auxílio até se restabelecer. Essa mulher potente, percebam, precisou de amparo social.

O lugar de dependência emocional é muito mais simbólico e, por isso mesmo, difícil de ser assimilado. Por conta dele, eu, você, a sua amiga tem tanta dificuldade de sair de relações violentas. Por ele, as mulheres se mantêm atadas por décadas a manipuladores. Justificam ficar nessas relações pela família, por dinheiro, quando, no fim, é uma dependência emocional difícil de desatar. Como foi para Maria, a personagem do filme que escrevi. Percebo isso de perto em diversos contextos.

Sou um bichinho observador e questionador. Me inquieta várias coisas. Por exemplo, minhas duas avós foram violentadas, traídas, eu, minha mãe também. Por que os homens são assim? Por que um de meus primeiros namorados, sendo louco alucinado de amor por mim, teve necessidade de me enganar e trair tanto? Aos poucos, fui entendendo. O mundo atrela o valor dos homens a partir do acesso à, basicamente, duas variantes: sexo e dinheiro. Uma coisa meio James Bond. A compulsão pelo poder e consumo das mulheres é, em muito, uma ausência de valor pessoal pleno. 

Pensa comigo: como são os filmes direcionados ao público masculino desde os anos 1970 para cá? Outro dia, estava assistindo a série White Lotus da HBO, gosto muito do roteiro e direção. Uns personagens discutiam como O poderoso chefão permeou o imaginário masculino e a imagem da mulher ideal ser meiga e submissa. Por outro lado, por que vocês acham que mulheres se entregam tão sem cautela ao amor romântico? Como o amor é retratado nas narrativas que consumimos por muitos e muitos anos? Um amor mais perto do real? Ou uma fantasia? Não à toa, abusadores dançam depois de nos violentar. 

Histórias escritas, dirigidas e produzidas por mulheres são fundamentais. A comunicação tem poder sobre a construção do imaginário coletivo. A tempo em que as artes narrativas se inspiram na realidade, elas transformam a realidade. Falando de comportamento social, de modo muito mais rápido que a ciência. Por isso, a gente precisa estar muito consciente disso. Quero trabalhar com esse universo por essas razões. E o dinheiro colocado nesses projetos não pode vir da mão de homens. Por que se vier, eles terão o poder de decisão. Vivi isso na pele num projeto que escrevi e participei. E eu não me sujeito. Posso não me sujeitar. 

Espero ter dinheiro para financiar essas paradas. O dinheiro ainda não está na nossa mão. Precisamos colocar o dinheiro na mão das mulheres. Sujeição é tudo o que querem. Se cresceram consumindo narrativas protagonizadas por homens, é difícil aceitar uma mulher que manda. Percebem como o lugar do abuso e da submissão são também simbólicos? E não que homens e mulheres não possam trocar, eventualmente, de papel. Nas relações homossexuais, normalmente, também existem esses dois papéis. O lance é quebrar o padrão. E, para nossa proteção, eles precisam ser quebrados com urgência nos relacionamentos. É questão de vida ou morte.


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