A violência sofrida por Ana Hickmann é, infelizmente, o assunto do momento. Mas, como e quando poderemos estabelecer relações amorosas saudáveis?

 A Floresta de Anita Malfatti

A temática dos relacionamentos é central no meu trabalho porque compreendo ser um dos grandes gargalos para todas nós. É através dos relacionamentos amorosos que constantemente somos subjugadas, violentadas. Com meu espírito de pesquisadora, de buscar todos os porquês, entender a realidade social e subvertê-la, acabo me dedicando bastante a estudar e criar tendo como pano de fundo esse problema. Minha tentativa hoje é não falar apenas o óbvio, embora o óbvio seja imensamente importante.

Lembro de uns anos atrás, em uma consulta de tarot - acho que o tarot é um instrumento interessante para acessarmos o nosso inconsciente - perguntar: como posso desenvolver relacionamentos saudáveis? Ao meu redor, tudo desmoronava. Mil e uma notícias de violências, traições, feminicídios… Naquele momento, a cada nova possibilidade de relacionamento, me deparava com um grande babaca. E, se eu não tenho o poder de mudar o outro, o que posso fazer para me proteger? Essa questão fica(va) pipocando na minha cabeça.

A maior parte das mulheres violentadas, abusadas (quais não foram?) vivem constantemente esse pavor. Algumas, escolhem não mais se relacionar para não ter que lidar com novas violências. Estar imersa o tempo todo nisso, como costumo reforçar, é cansativo. Porém, se hoje estamos acessando a consciência dessa imensa e histórica problemática é porque, acredito, há um trabalho coletivo a ser feito. Os homens, de modo geral, seguem meio acomodados. Como sempre, o peso de se expor, de gritar contra, de buscar formas e formas de se proteger acaba sendo muito mais nosso.

Vivo atualmente uma relação gostosa, a considero saudável. Acredito muito na potência do amor. Porém, sigo com medo de não estar enxergando, de estar fazendo errado, de estar dando mais do que estou recebendo. Traumas, muitos traumas. Criei minha primeira publicidade para vender o Perfeito, sem Defeitos, o melhor sugador de clitóris, afirmando: “homem só serve se for para trazer paz”. Como sempre, falo de mim mesma. Meu companheiro me traz paz. Não há angústias permanentes na minha relação. Nossos problemas são resolvidos sem acusações, há diálogos.

Um relacionamento cheio de paz é um excelente limite para impormos. Pode ser difícil para você perceber a possibilidade de impor esse limite no momento, entendo. Porém, a gente precisa pensar: porque é mais fácil permanecermos em relações conturbadas, repletas de pequenas e grandes violências, do que simplesmente ir embora, cessar esse tipo de sofrimento, ficar só e lidar conosco, com nossas faltas, nossos traumas e vazios?

Em um dos depoimentos que recebi após a compra do Perfeito, sem Defeitos (ele está publicado aqui em vídeo), uma mulher com trinta e poucos anos relatou: toda vez que tinha um orgasmo chorava de culpa. Seu pai e mãe, violentos, a fizeram sentir suja, errada, por viver sua sexualidade. Não ao acaso, ela também vivenciou uma relação abusiva. Porém, está buscando formas de sair desse lugar, de entender seu valor e beleza para muito além do que lhe foi imposto como padrão, como crença. Afinal, sob qual crença sobre ser mulher seu pai e mãe tentaram lhe formatar?

A história da minha família, como também a de Ana Hickmann, narra um sistema de mulheres dependentes emocionalmente que serviram e de homens inábeis, traidores e violentos. Para sairmos deste lugar e impor o limite de que “relacionamentos só servem se nos trouxer paz” há um trabalho gigante a ser feito. E, para caminharmos nesse caminho, vamos ter que estar prontas para nos deparar com abismos, lagos profundos, espelhos que temos criado infinitas estratégias para não ver. 

Enquanto relações saudáveis podem também funcionar para entrarmos em contato com partes nossas desagradáveis e, com consciência, transformar, muitas vezes entramos em relações disfuncionais simplesmente para não ter que lidar com o que falta em nós. Para não olhar para o abismo, entregamos nossa vida ao outro, escolhemos viver em função do outro, mesmo que isso signifique amargos sofrimentos insuportáveis de suportar. Pela forma como somos criadas, a minha hipótese é de que muitas mulheres não se enxergam como sujeitos das suas vidas. Nos vemos inconscientemente como objetos para servir ao outro. Só nos entendemos como seres de valor quando estamos servindo, quando somos escolhidas. E isso vai muito além das relações afetivas.

Servir e depender é a nossa história ancestral. Me parece que estamos vivendo muitos lampejos de consciência nos últimos anos. Por isso que, muito além de apontar problemas, denunciar diariamente as violências, criar leis e políticas para nos proteger, precisamos olhar para nós, para a história das nossas famílias, para nossas dores e traumas individuais e coletivos e criar estratégias para caminhar. Não podemos ser mais vítimas. Longe de querer nos culpar, mas em qual lugar estamos permitindo que esses homens nos façam vítimas? Para essa parte, também precisamos olhar.


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