Amar é fácil, simples. Difícil é ser humano
O aniversário - Chagall
Há tempos compartilho minha jornada na busca de aprender a construir relações saudáveis e conscientes. Desde que comecei a me relacionar com homens, com apenas 12 anos, vivi coisas terríveis. Desde traições, desrespeitos, desimportância, até violências físicas e psicológicas. Sem falar dos assédios e abusos. Com meu espírito questionador, sempre me perguntei os porquês e como era possível transformar. Logicamente, esbarrei nos padrões de gênero tão falados por aqui. Aprendemos muitos deles em nosso meio familiar. Por isso, amo a psicanálise. Mas não a acho suficiente para resolver tudo. Como já comentei, poucos são os profissionais hábeis a tratar questões pautadas pelas lógicas de opressão, como: gênero, raça, sexualidade, entre outras. Curto muito estudar, discutir, investigar.
Como escrevi semana passada no vídeo do discurso de Reese Witherspoon, grande parte de nosso comportamento são moldados também pelas narrativas que temos acesso. Não é de se espantar que os contos de fada e os filmes de Hollywood fizeram muitas gerações de mulheres projetar o príncipe encantado a cada esquina. Por outro lado, os homens aprenderam a ser homem vendo filme de faroeste, super herói, máfia, duro de matar, 007 e coisas do tipo. Percebem como são construções de comportamento um tanto quanto antagônicas para homens e mulheres? Não por acaso, ficamos perdidas, ocupando e transitando por pólos opostos desse cabo de guerra.
No fim do ano passado, resolvi seguir o conselho de uma professora de roteiro e assistir a série Família Soprano. Ela aborda a vida de um homem da máfia em New Jersey, nos EUA. Para minha professora, é uma das mais bem escritas. Entendo sua perspectiva tendo como recorte sua geração. Porém, para mim, ela está longe de ser tão boa. Na real, tenho raiva assistindo e demoro horrores até ver um um novo episódio. Não nego que há um mapa muito bem articulado do que é a construção de masculinidade. Porém, por mais que a trama questione o padrão, acho que não há tantos elementos para quem assiste entender sua perversidade e subverter. Pelo menos até onde vi. Também senti muito ódio vendo Mad Men. Até hoje não consegui terminar.
Recentemente, conversando com amigos, vários me contaram ter tido a primeira experiência sexual com prostitutas, assim como os primos e amigos do bairro ou escola. Num dos casos, a própria mãe deu dinheiro para a cria ir perder o “cabaço” e se tornar homem. Já outro foi acompanhado do pai a uma casa de prostituição. Como não ter problemas com o sexo e a sexualidade quando se inicia a vida sexual dessa maneira? Quando se aprende a ter valor a partir da agressividade e indiferença comum às narrativas direcionadas aos homens? Como não objetificar e odiar as mulheres se, desde cedo, as entendem como seres inferiores? Como não achar que as mulheres existem para servir aos homens?
Entendem como construir relações saudáveis é difícil? Como amar livre de medos é quase impossível? Somos humanos, criados através de uma série de padrões desumanizantes, tanto para homens como para as mulheres. Como se não bastasse, nas redes sociais, com o uso do marketing digital e com a ganância humana de ganhar dinheiro através da venda de produtos digitais, principalmente cursos, tem havido uma série de narrativas equivocadas. Elas pegam exatamente essas dores, transformam em mercadorias através de respostas sem sentido e sem base científica. Se estamos carentes de amor, muitos têm vendido soluções fáceis, se aproveitando de quem não pode construir pensamento crítico.
O agouro da falta de energia feminina que comentei é justamente isso. Há uma série de especialistas sem formação e coachs que divulgam que somos infelizes porque o feminismo fez com que as mulheres se tornassem masculinas, sem vontade de casar, cuidar do lar e ter filhos. Mas ninguém conta que isso aconteceu porque cansamos de ser violentadas. Porque muitas não aceitam mais ser tratadas como objetos de serventia doméstica e sexual. Porque nós mesmas precisamos nos explorar para ter uma condição material minimamente digna. Não foi o feminismo que produziu essas mazelas. Muito pelo contrário. Enquanto movimento teórico, ele está construindo conhecimento para que a gente consiga subverter esses e outros males.
Vivendo todas essas crises, dores, penso que nós, cada vez mais, estamos nos tornando pouco hábeis ao amor. É muito possível que essa ausência de afeto e tudo que essa falta representa, esteja nos adoecendo, nos deixando dependentes de drogas legais, ilegais e muitos outros excessos. Para mim, o que faz muito mais sentido é desenvolvermos um movimento em que a gente aprenda a amar para muito além de energias ditas femininas ou masculinas. É provável que falte a todos nós, independente da condição de nascimento, da sexualidade, do gênero, uma habilidade para o amor.
Num mundo misógino, que odeia toda e qualquer expressão de doçura, que recalca o amor - eu mesma fiz isso por anos e anos - é compreensível que alguns supunham que a tal energia feminina tenha sido perdida. De fato, somos muito mais guerra, muito mais corre, do que uma abraço apertado e uma noite de conexão e amor. Somos muitos mais fuga do que presença. Somos mais “vida que segue” ao invés de escutar, compreender e transformar. Amar é fácil, é natural. Simples. O difícil mesmo é nos livrarmos de todos esses pesos, medos, da sensação de desamparo e consequente necessidade de controle para vivermos plenamente o amor.