A pandemia mudou nossa forma de ser e agir?
Composição - Tarsila do Amaral
Vivemos tempos terríveis. Encontramos a morte face a face. Lidamos com isolamento, com outra rotina. Perdemos quem amamos. Há um ano atrás nossa vida foi outra. Mergulhamos, com muita intensidade, no mundo digital. Mas, de fato, como essa dor mudou nossa percepção? O modo como agimos? Do meu lado sinto mudanças. Transformações. Ao me sentir profundamente só, mudei de rotas. No início da pandemia precisei ficar sozinha num apartamento de pouco mais de 30m2, sem vista, no Rio de Janeiro, longe da família. Tinha medo até de colocar o lixo para fora. Pensava no que poderia acontecer se contraísse a doença estando distante.
Liguei algumas vezes para minha mãe dizendo que não estava suportando. Voltei para casa. Para minha cidade. Para meu lugar. Para perto dos que estão comigo desde de sempre. E não quis mais sair. Pelo menos por agora, não quero sair. Não quero mais morar só. Quero relações. Quero construir boas e saudáveis relações. Não é fácil, não é simples. Dá trabalho. Qualquer tipo de relação dá trabalho. Tenho me dedicado. Tenho trabalhado.
Em 2019, antes da pandemia, já tinha ido no fundo do poço. Foi quando, pela primeira vez na vida, morei só de verdade e, não sei muito porque, escolhi não me relacionar. Não lembro exatamente, mas foi um ano que não tive encontros e não fiquei com quase ninguém. Não sei se algo em mim me preparou para o horror seguinte. Não sei se só estava lidando com minhas dores de forma mais profunda. Principalmente, a de ter atravessado um relacionamento extremamente abusivo.
Cada uma de nós vivencia processos únicos a cada momento. Eu só escutei o que estava sentindo. Não de forma leve ou tranquila. Foi na base do sofrimento. Hoje e, principalmente, depois do isolamento estou tentando ser mais aberta. Menos bélica, apesar da minha lua em Áries e das violências cotidianas sofridas apenas pelo fato de ser mulher. Continuo apegada. Ao invés de dizer adeus repetidamente, tenho estado mais confortável com meus sentimentos, com incômodos ou apaixonamentos. Não quero solidão. Quero ficar. Quero construir. Solidificar.
O que questiono é: a pandemia e as narrativas produzidas e difundidas em massa pelas redes sociais têm nos tornado mais conscientes? Ou mais violentos? Mais abertos ou fechados a amar? Podemos pensar que tudo tem piorado ou depende… Toda e qualquer transformação é lenta. Requer trabalho e olhar para nossas dores, egoísmos, nossa laminha. Nossos mais profundos traumas. As formas tortas como fomos criadas. No fim, de modo geral, estamos habituados a desviar. A não pensar tanto. Porque pensar dói.
Também gostaria de soluções mais prontas e rápidas. Ao identificar qualquer questão durante a terapia meu primeiro pensamento é: como posso mudar isso? Escuto com frequência: “não tem como, é algo que vai ser internalizado e transformando”. Sei lá, talvez com a política seja por aí. Não é rápido. Não é fácil. Dá trabalho. De verdade, adoraria não ter que votar em Lula no próximo domingo. Reconheço sim todos os seus feitos, mas não curto várias de suas posturas. Alianças. Quando cantavam olê, olê, olá, Lulaa, Lulaa, eu sempre cantei Dilmaa, Dilmaa.
E não é porque ela é mulher. É pela ética. Mas, na política, ética ainda não faz sentido. Um dia, quem sabe, chegaremos lá. No próximo domingo gostaria de votar numa candidata realmente progressista. Que tivesse soluções mais sustentáveis. Porém, estamos no fundo do poço do fascismo. Há muita ideologia, muito ódio, horror. Uma distância gigante para o amor. Quero Lula presidente e uma sociedade extremamente crítica ao seu governo. Política precisa ser feita no dia a dia e coletivamente. Não há salvadores da pátria. Para acabar com as diversas mazelas, primeiramente, a gente precisa transformá-las na gente.
Adianta ser um homem de esquerda e perguntar se o produto que vendo serve para aspirar pó de teclado como uma estratégia de me agredir e agredir as mulheres? Adianta ser um homem de esquerda e enrolar, mentir, trair, violentar? Não cuidar dos filhos que coloca no mundo? Adianta ser mulher de esquerda e não olhar para nosso machismo, racismo, classismo? Adianta cantar Lulalá e ser escroto? Sem falar nos que enxergam a esquerda como um mal e não percebem suas posturas. Como uma moça dita conservadora cujo xingamento a uma de minhas leitoras foi: “não tenho culpa se você só se ferra com homens… também com essa cara, pudera.”
A mudança é coletiva, mas ela precisa acontecer primeiro dentro da gente. É preciso uma ação consciente para perceber e transformar o que há de feio dentro de nós. Estamos prontas para isso? Mesmo tendo encontrado a morte face a face, todo horror, todas as mazelas de uma gestão extremamente violenta, qual despertar isso provocou? Para terminar de forma otimista, acredito que sementes estão sendo plantadas. Elas podem demorar para florescer. Fundos do poço nunca são em vão. São sempre um convite. Resta saber qual parte de nós está aberta a aceitá-los. A segurar na mão dessas dores e emergir.