Relacionamentos não são para nos fazer felizes, são para nos fazer conscientes. Eckhart Tolle mudou minha percepção do amor
Abrace a amorosidade - Francis Picabia
Passei o último mês na praia. Não sei muito porque, mas no início desse ano senti essa vontade e pude seguir meu coração. Queria pausar um pouco, fazer uma quaresma diferente. Estar perto do mar e de quem amo. Foram dias incríveis. Deu para curtir, ficar com a família, amigos. E pude também trabalhar mais intensamente como havia planejado. Voltei para o livro que comecei a escrever ano passado. Essa obra surgiu primeiro como peça de teatro no início de 2020, criada para participar do concurso Ariano Suassuna de Dramaturgia e Cultura Popular, o mesmo que fui premiada em 2019 com a peça Eu sou o homem.
Depois de pronta, pensei: a narrativa poderia ser um excelente livro de literatura. Estou trabalhando nele desde o ano passado. É uma autoficção que atravessa muitos dos relacionamentos que vivi, todos os atrapalhos e a busca por um amor saudável. Várias questões que discuto por aqui, do porquê, por exemplo, agimos como agimos, e porque os homens agem como agem, estão sendo aprofundadas, com muitos detalhes, através de anos de vida de uma personagem. Olívia, apesar de ter vivido situações semelhantes a mim, é completamente outra pessoa. Até já tive certa invejinha dela. Olívia é bem corajosa e romântica.
Acho que minha geração - e muito mais as anteriores - não tiveram a oportunidade de aprender a amar de modo saudável. Nina, minha sobrinha de dois anos, me parece ter muito mais possibilidades. Juli e Augusto a criam com bastante autonomia, amor, segurança, a ensinando como comunicar sentimentos. Ela sabe dizer quando está com medo, quando precisa de colinho, quando quer ou não quer algo. E não é chamada de chata, dramática ou, se fosse um menino, nunca teria seu choro condenado.
Seus pais não agem de forma manipuladora diante de seus comportamentos. Não disputam poder com uma criança. Não existe aquilo de não é não e ponto final. “Porque sou o seu pai” ou “porque sou sua mãe” ou “quem manda sou eu”. Quando faz birra, ouve argumentos. Quando está braba, descompensada (as más línguas dizem que puxou a mim), repete sozinha, com voz de ódio, o mantra ensinado: “Nina, respila, não precisa ficar irritaaadaaa (dentinhos tricandos nessa parte)”.
A maioria de nós não teve a oportunidade de Nina. Não é de se espantar que a gente não saiba se relacionar. Não é de se espantar que homens aprenderam a ser homens através de exemplos horríveis. Alguns vindos da própria mãe, como uma ex-sogra de uma amiga que a fez tirar um pedaço de carne do prato para dar ao seu companheiro. Se os homens nos tratam como objetos, se nós consomem em série, nos traem, nos violentam de várias maneiras, a gente não pode achar que isso é obra do acaso. Se há abusadores e feminicidas em série, como o garoto de 13 anos que matou sua professora semana passada, é porque não estamos ensinando a essas crianças o amor.
Penso que o sentido da vida é o amor. É poder comungar com quem gostamos de estar do lado. Não gosto de ser determinista e pensar que tudo de ruim que vivemos é para nos ensinar algo. Hedonista, leonina que sou, só queria mesmo experienciar o doce da vida. Mas se não tivesse vivido tantas coisas horríveis não teria como fazer o trabalho que faço. Não teria como estar me dedicando a aprender a viver relações conscientes e saudáveis. Não teria como escrever sobre essa jornada.
Coletivamente, penso que estamos construindo esse movimento. As relações afetivas parecem mesmo ser, como afirma Eckhart Tolle, os espaços mais propícios para nos desenvolvermos enquanto humanidade. São nas relações afetivas, quase sempre, que experimentamos o melhor e o pior da nossa personalidade. O melhor e o pior da personalidade do outro. Como a personagem do meu livro, podemos vivenciar polaridades - da traída para a amante, da controladora para a controlada. E qual o sentido de todas essas experiências? Me parece ser a evolução e o amor.
Quanto encaramos que as relações amorosas não são para nos fazer felizes unicamente, mas que são espaços para nos desenvolvermos, para que possamos entrar em contato com nossa laminha, liberar o medo e controle, as estratégias de manipulação que praticamos até sem perceber, acredito que podemos ser mais tranquilas sobre os caminhos da vida. E isso não significa que devemos aceitar o que não pode ser aceitado. Não me entenda mal. Às vezes, vivemos situações terríveis justamente com a função de aprendermos a estabelecer limites, a dizer adeus ou um sonoro não. Nina, por exemplo, adora dizer não. O não dela é a coisinha mais linda.
Repito: não gostaria que fosse assim. Gasto muito dinheiro em terapias, horas e horas estudando, me analisando. Todo esse trabalho, todas as violências vividas me parecem bastante injustas. Mas se a gente não aprendeu a amar de modo saudável com nossos antepassados, quando pequenos, quem é que vai poder nos ensinar senão os caminhos da vida e a nossa dedicação em transmutar dores? Penso que esse trabalho individual que muitas de nós está desenvolvendo vai reverberar de modo muito bonito no coletivo. Inclusive - e talvez principalmente - no modo como educamos nossos filhos.