Um destempero que é tempero
Cena do filme Vicky, Cristina, Barcelona de Woody Allen
Tenho observado que, muitas vezes, o amor nasce ou se solidifica nos destemperos, nas nossas inseguranças, nos conflitos de casais. Se isso é saudável, provavelmente não. Mas vamos aqui reconhecer um pouco da natureza humana. A gente tem dificuldade de olhar para as sombras, para o que não é bonito. Quando agimos completamente no escuro pode ser muito mais perigoso, inclusive.
Quem nunca transou enlouquecidamente gostoso após uma briga? Lembro de vivenciar essa emoção a primeira vez ainda muito novinha. Devia ter uns 18 anos. Transamos em pé, comigo em seus braços e usando a porta do guarda-roupa de apoio. Não deu nem tempo de tirar a roupa. Consigo lembrar até do que vestia. Uma saia jeans e uma blusa vermelha.
Alguns casais acabam criando conflitos banais como forma de estiga. Para algumas pessoas, um amor muito plano pode se tornar sem graça. A sorte de um amor tranquilo, por vezes, pode ser azar. Como sou maluquinha, adoro o filme Vicky, Cristina, Barcelona e suas histórias de amor. O arco da personagem Vicky reforça o argumento de que um amor monótono pode ser sem graça. É preciso movimento ou um Juan Antonio em nossas vidas.
Gostamos do que, em algum lugar, nos transtorna. Do que incomoda. Do que nos faz mudar de direção. O que nos enlouquece um pouquinho. Só precisamos ter cuidado. O excesso de destempero pode matar o amor, ferir e acabar com vidas. Adicionar o machismo todo esse caldo humano tem sido mortal. É necessário consciência. Não exalto aqui os destemperos, olho com atenção para ele.
Eu só namorei esse boy do sexo na porta do guarda-roupa quando ele, declaradamente louco apaixonado por mim, começou a ficar com outra. E só aprofundei a relação depois dele terminar comigo. Sua queixa era minha distância. A volta da gente foi uma das coisas mais românticas e lindas. Eu só consegui entrar nesse amor a partir dos conflitos. Em quase todos os outros também. É foda se dar conta disso. Era para ser mais fácil. Na maior parte das vezes, somos muito doidos.
É bem possível que a gente triangule, ameace partir, faça joguinhos, ceninhas justamente para trazer pitadas de emoção à relação. Para fazer ela, de alguma maneira, acontecer ou perdurar. Controle e medo devem também entrar nessa conta. Amor e ego não deviam se misturar. Acontece que é impossível separá-los. Até para os budistas o destempero deve ser o tempero do amor.
Ultimamente, tenho me deparado com nossas imperfeições, com nossas construções tortas de amores, com nosso desejo por aquilo que foge do normal. Por ter sofrido um bocado, comecei a rejeitar qualquer grau de destempero. A fantasiar com um amor perfeito e ausente de conflitos. Mas isso não existe. Relações mais saudáveis são possíveis. Tenho fé que são. Ausência de conflitos, de sentimentos humanos como raiva, ciúme, medo de rejeição não. Lidar com tudo isso de forma mais madura e consciente que é a parada.
Afinal, por que gostamos tanto de enforcadinhas, tapas, imobilizações durante o sexo? (Sem falar de outras bizarrices) Por que buscamos tanto intensidade de emoções em momentos além sexo? Somos tão dependentes de sentir a montanha russa de emoções que as formas de arte e entretenimento tratam basicamente delas. Nos levam a elas.
Um dos livros mais lindos que li aborda justamente esse universo imperfeito, intenso e nada saudável do amor. Ele se chama “Queria ver você feliz” de Adriana Falcão e conta a história do relacionamento dos pais da autora através das cartas trocadas entre eles, seus profundos destemperos e fim da vida do casal. O amor aparece como narrador e também personagem. Ao questionar nossas maluquices, ele diz “as pessoas não são normais”. A gente é meio torto mesmo. Ao que parece, o normal não agrada tanto.