Cancelar mulheres como Chimamanda e Djamila por trazer um debate importante me parece desonestidade e me irrita
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Enquanto Elon Musk, Trumps e seus pupilos brasileiros seguem fazendo cagadas e mostrando quem detém o poder nessa porra de planeta, mulheres, mulheres negras de extrema relevância, seguem sendo achincalhadas pelo seu posicionamento e pensamento. A lógica de ódio dos algozesritmos das redes sociais é essa: atacar, destruir, cancelar. Sei que falar disso é mexer num vespeiro. Mas nenhum pensamento evolui sem contestação e um profundo e respeitoso debate ao que se coloca.
Para fazê-lo é preciso coragem. E poucos têm estado dispostos justamente pelo peso colocado. Quem tem feito, tem sido cancelado. Atacado. Aqui falo de debate, não de ataques de ódio de pessoas nitidamente transfóbicas. Isso, de modo algum, deve ser tolerado. Sabe o que percebo? Como uma construção binária incutida em nosso pensamento, estamos divididos entre os “certos” e “errados”. Comunistas ou capitalistas e assim por diante. Esse óculos é um grande problema. E tem nos faltado senso crítico para retirá-lo. Ideias são plurais. Evoluímos a partir da diversidade de pensamento, não do achatamento. Porém, me parece que com as redes sociais temos nos tornado ainda mais binários e de olhos fechados.
Enquanto atacamos quem está do nosso lado na luta, o dono do Twitter segue mais rico e com mais poder. E a gente, muito estupidamente, usando a ferramenta dele para agredir e destruir mulheres. Afinal, quem tem dominado o planeta há milhares e milhares de anos? Quem segue sendo violentada em todos os âmbitos? As contribuições intelectuais de Djamila e Chimamanda são inegáveis. As chamar de transfóbica e querer destruir o trabalho dessas mulheres serve a quem? Para quem não sabe, Chimamanda tem sido cancelada apenas por dizer que a experiência de uma mulher cis é diferente da experiência de uma mulher trans. Isso não é óbvio? Djamila, ao apontar que o uso do termo “pessoas que menstruam” têm provocado uma certa unificação de categorias sociais muito diferentes, idem.
A gente podia estar discutindo como são nossas experiências e quais formas mais adequadas de categorizar, nomear, mas não. Estamos apontando dedos. Dizendo quem serve e quem não serve. Ao fazermos isso, caímos na teia dos likes, compartilhamentos, engajamentos. O ódio, na era dos algoritmos (por isso chamo de algozesritmos) vende. As redes sociais nos forçam a ver apenas dois lados. Nos colocam sempre como opostos, inimigos. Não à toa o neofacismo cresceu tanto nos últimos tempos.
Vamos falar de experiências diferentes? Não de melhores ou piores porque não se parametrizam dores? Tem uma série sensível e inteligente que as retrata. As narrativas, muitas vezes, nos possibilitam perceber os problemas e contradições de modo mais fácil. Falo de Manhãs de Setembro estrelada por Liniker, umas das artistas que mais admiro. A personagem Cassandra, interpretada por ela, uma mulher trans negra, descobre que tem um filho com oito anos. De início, nega cuidar da criança. Leide (interpretada pela brilhante Karine Teles), a mãe, mesmo sendo uma mulher cis branca, carregou sozinha por anos essa responsabilidade. Precisando, por muito tempo, morar dentro de um carro na rua. Ninguém chamou a criadora Josefina Trotta de transfóbica por retratar as diferenças e sofrimentos de ambas, ainda bem. Não haveria razões para isso.
Nascer mulher foi e é um fator de opressão em todas as sociedades e em todos os períodos históricos registrados. Em muitas culturas, significa ter o clitóris extraído, submissão e cerceamentos dos mais diversos. O comportamento esperado de homens ou mulheres, ou as performances de gênero, em minha visão (tudo bem você discordar), foi criando em muitos de nós a sensação de inadequação. Estamos, de alguma forma, imprimindo forças de contestação a essa construção binária a partir do sexo biológico. E esse movimento é maravilhoso. Mas o problema segue sendo o gênero. Quando Simone de Beauvoir diz que não se nasce mulher, se torna mulher, o mesmo pode ser aplicado para mulheres trans, homens cis ou homens trans. O gênero é socialmente moldado. Mas nascer mulher significa. Não ser homem cis igualmente. Isso sem falar de raça que também molda as opressões. Afinal, quem detém o poder?
Em minha visão, somos livres para sermos o que quisermos. Ter peito, não ter peito. Ter pau, não ter pau. Ter boca grande, nariz pequeno. Temos técnicas para moldar nossos corpos. Também penso que podemos usar o gênero masculino ou feminino como preferirmos. Ou nenhum dos dois. E não estou aqui reduzindo as pessoas a forma dos seus corpos porque entendo que o problema não são nossos corpos. O problema são os comportamentos ditados e nosso desejo, por vezes inconsciente, de se adequar a um lado ou a outro. E não falo isso como uma crítica. Não sei se um dia será possível a gente não desejar se adequar. Da minha parte, falho muito no que dizem ser uma mulher. Não nego meus privilégios. Porém, não desconsidero minhas profundas angústias por me sentir constantemente inadequada.
Em alguns contextos acho que cabe usar o termo “pessoas que mentruam”. Porém, em outros não. É preciso diferenciar. Confesso me questionar ao usar “mulher” em meus escritos justamente por temer não estar sendo inclusiva. O debate trazido por Djamila, para mim, bateu nesse lugar. E na importância de validarmos o uso da categoria “mulher” a partir do lugar de opressão no qual somos submetidas - cultura do estupro, trabalho doméstico não remunerado, exploração da nossa força reprodutiva, violências das mais diversas. Não que o movimento queer ou trans estejam afirmando diretamente que não devemos falar desse lugar. Mas existe uma ideia coletiva de que o sexo de nascimento não significa tanto, que importa mais a nossa escolha de gênero. Não estou dizendo o gênero definido não importa, apenas que sexo biológico é marcador de opressão. E isso deve ser considerado.
Todos somos sujeitos políticos com particularidades de vivências. Nos categorizar a partir das nossas funções biológicas pode ser sim um apagamento para todes, todas e todos. Isso, principalmente, nas redes sociais. Concordo com Djamila. Há perigos nesse processo. Será que a gente consegue fazer esse debate com mais maturidade? Fazer esse debate não é ser preconceituoso ou transfóbico. É simplesmente uma tentativa de interpretar o movimento social que se coloca e redirecioná-lo, se preciso for. É para isso que a ciência serve. Não se pode silenciar quem está trazendo a pauta. Ou vamos no campo progressista nos comportar como os alienados que criticamos tanto do outro lado? Ao invés de comunistas, vamos chamar essas mulheres de transfóbicas? É isso mesmo?