O que a PEC 164/12, que pode proibir o aborto em casos legais, tem a ver com sua sexualidade?

  Buquê de flores de Hilma af Klint

Mulheres que vivem de forma saudável sua sexualidade já poderiam ser consideradas exceção, milagres. Há muitas forças atuando para atacar nossa natureza, reprimi-la, colocá-la a serviço. Fui moldada para ter medo de engravidar, para me “dar valor”, “não ser fácil”. Não fui preparada para lidar com os assédios, com a cultura do estupro. Foram assuntos empurrados para debaixo do tapete. Como são, assim, de modo geral. Quantas mulheres têm a sorte de não serem assediadas ainda na infância? Muitas vezes, sem nem entender o que está acontecendo e levar décadas para elaborar o trauma. Por ser difícil, quantas de nós escolhe não falar a respeito, não revelar abusadores? 

Assisti nesse fim de semana a série Disclaimer, escrita e dirigida por Alfonso Cuarón, disponível na Apple TV. Achei magnífica em muitos sentidos. O discurso de início é o que escrevi de várias formas em minha tese. O mesmo que repito com frequência aqui: as narrativas possuem o poder de revelar a realidade e também de moldá-la e manipulá-la. É isso que a trama busca provar do início ao fim. Para quem não viu, indico.

Os conservadores bárbaros, que traçam suas cruzadas para retirar o direito das mulheres e aprofundar nosso lugar de submissão, sabem disso. Na verdade, tem se tornado grandes mestres. Soldados da manipulação. Li recentemente uma matéria do Intercept chamada Escolas Paralelas que apresenta dados alarmantes: o grupo conservador Brasil Paralelo está presente em 284 instituições educacionais infantis, difundindo seu conteúdo antiprogressista, antifeminista, ultraliberal e conservador. 

O que aprendemos nas escolas são narrativas, o que ouvimos na igreja, no templo ou em qualquer outro espaço de cunho religioso, também. O que lemos, o que ouvimos nos mais diversos lugares são histórias que vão moldando nossa percepção de mundo. No entanto, será que nos ensinam senso crítico para não nos deslocarmos da realidade? Da verdade? Nem a realidade, nem a verdade deixam de existir. 

O Brasil Paralelo com seu documentário forjado pode afirmar que a história de Maria da Penha é uma farsa, querendo te fazer crer que a violência contra a mulher não é o que pintam, que as mulheres são manipuladoras e agem através do desejo de vingança. Porém, basta olharmos ao nosso redor, para a nossa própria realidade e ler a verdade. Não desviar nosso olhar é a chave.

Veja que conveniente: se o grande líder golpista conservador do Brasil está para ser preso por crimes comprovados, que tal desviarmos desse assunto e passarmos a PEC que criminaliza o aborto? A que privatiza as praias? Que tal fingirmos que a cultura do estupro não existe? Que crianças não são vítimas todos os dias de violências sexuais cometidas pelos próprios familiares? Além de tudo, mulheres são usadas como moeda política.

Se o aborto é um atentado contra a vida, porque não impedimos como sociedade que ele não seja necessário? Ou melhor: que seja minimamente necessário. Temos ciência, dados de realidade que apontam caminhos. De como outros países lidam de forma mais eficiente com o problema. Será que o discurso de que a vida de um feto importa (e não estou dizendo que não importa) é real? Ou ele está a serviço de algo? De outros interesses? E porque a vida das mulheres não importa? Por que permitimos meninas e mulheres serem violentadas?

A nossa sexualidade é afetada por todo esse universo de questões. É a partir do nosso corpo que somos violentadas, coagidas, assediadas, estupradas, dominadas, escravizadas, obrigadas a gerar. Resgatar nossa sexualidade, acredito, é uma forma também de resgatar o nosso poder, nossa sagacidade. Nós, mulheres, penso eu, precisamos ser mais estratégicas. Criar meios de nos proteger coletivamente, de não deixar essas narrativas prosperarem, de não desviar nosso olhar do que importa. Precisamos ocupar lugares de poder para nos proteger.

Para finalizar, um aviso: vou pausar as crônicas por um tempinho. Sempre faço no fim do ano e agora também pela espera de Antônio. Não vou me afastar por completo das redes, seguirei da forma que for viável. Trazendo debates e reflexões em outros formatos, além de apoiar o avanço da nossa autonomia, bem-estar e poder. Lembrando que o Perfeito Pro vai ser lançado na próxima quarta-feira, dia 04 de dezembro, exclusivamente pelo meu canal de transmissão do instagram.


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“Depois do sugador de clitóris, homem só serve se for para trazer paz”, com essa crônica lancei o Perfeito. Em breve, um novo ciclo.